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Constitucionalidade da exigência pecuniária, efetivada pelo Poder Público, desprovida de natureza tributária
Aldemario Araujo Castro
Procurador da Fazenda Nacional
Professor da Universidade Católica de Brasília
Mestrando em Direito na Universidade Católica de Brasília
Membro do Conselho Consultivo da APET – Associação Paulista de Estudos Tributários
Ex-Coordenador-Geral da Dívida Ativa da União
Ex-Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional
Maceió, 8 de janeiro de 2006
Identifica-se, com alguma freqüência, a afirmação da impossibilidade, na ordem jurídica brasileira, de uma exigência pecuniária, oriunda do Poder Público, desprovida de natureza tributária.
Ocorre que é juridicamente válida a criação, pelo Poder Público, de uma exação, de uma exigência pecuniária, desprovida de natureza tributária, com ou sem fundamento constitucional expresso ou explícito. A instituição em questão é viável desde que atendido o princípio da legalidade e certas restrições próprias da ordem constitucional vigente, tais como a proporcionalidade e seus consectários.
O principal fundamento para a existência da possibilidade em comento está presente nas características do Estado desenhado pelo constituinte. Se temos objetivos a serem alcançados (erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos), reclamando ações do Poder Público e de segmentos da sociedade, inúmeras delas materializadas em prestações de serviços e benefícios, devem ser admitidos como necessários à sua consecução a instituição das respectivas fontes de financiamento. Por outro lado, a plena realização de uma ordem econômica, pautada em princípios como os da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170 da Constituição), reclama a utilização de mecanismos adequados, inclusive aqueles que possam interferir na formação de preços e tarifas.
Com efeito, a Constituição autoriza a fixação em lei de condicionamentos ou limitações ao exercício ou desenvolvimento de certas atividades econômicas, notadamente aquelas estratégicas (com ampla repercussão sobre as demais).
Os condicionamentos ou limitações legais decorrem, como é de fácil percepção e conclusão, de características próprias das atividades desenvolvidas. Com efeito, razões diversas, agasalhadas como valores constitucionais, podem e devem levar o legislador a regular com maior ou menor intensidade, com o manejo de certos instrumentos ou mecanismos, a liberdade econômica (privada).
O raciocínio de que o Poder Público somente poderia manejar espécies tributárias para desempenhar o papel de exigências pecuniárias afronta os contornos constitucionais do Estado Democrático de Direito consagrado entre nós. Afinal, deve existir espaço, devem existir mecanismos práticos, inclusive de natureza pecuniária, para interferência em mercados, particularmente os estratégicos e fundamentais para os equilíbrios interno e externo da economia brasileira.
A licitude de exigência pecuniária não tributária já foi sufragada explicitamente pelo Supremo Tribunal Federal. A partir do julgamento do RE n. 83.662, a Corte Maior entendeu que o salário-educação, com as feições da época, encerrava natureza singular e afastada do campo tributário. Eis, a título de exemplo, a ementa do RE n. 85.357:
“Salário-educação. Natureza de contribuição sui generis, sem caráter tributário. Precedentes do Supremo Tribunal Federal” (Ministro Leitão de Abreu. 2a Turma. Julgado em 08.03.1977).
Do voto do Ministro Moreira Alves no RE n. 83.662, destacamos as seguintes passagens:
“A contribuição representada pelo salário-educação não é tributo, mas, sim, uma das prestações com que as empresas podem cumprir a obrigação constitucional de auxiliarem o Estado no setor da educação. (...) Não se tratando de tributo nem de preço público, não está a contribuição do salário-educação sujeito às normas tributárias, nem ao princípio da proporcionalidade com o serviço efetivamente prestado. Deverá ela observar, apenas, a forma estabelecida na lei federal, consoante o disposto no art. 178 da Emenda no 1/69.”
Não custa lembrar que a partir da edição da Emenda Constitucional n. 8, de 1977, até a promulgação da Constituição de 1988, prevaleceu o entendimento, firmado pelo Supremo Tribunal Federal, de que as contribuições previdenciárias, estabelecidas pelo Poder Público, não possuíam natureza tributária.
Por outro lado, o mesmo Supremo Tribunal Federal já rejeitou a natureza tributária da contribuição ao FGTS por não se enquadrar como receita pública. Vejamos a ementa da importante decisão (com destaques inexistentes no original):
"Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Sua natureza jurídica. Constituição, art. 165, XIII. Lei no 5.107, de 13-9-1966. As contribuições para o FGTS não se caracterizam como crédito tributário ou contribuições a tributo equiparáveis. Sua sede está no art. 165, XIII, da Constituição. Assegura-se ao trabalhador estabilidade, ou fundo de garantia equivalente. Dessa garantia, de índole social, promana, assim, a exigibilidade pelo trabalhador do pagamento do FGTS, quando despedido na forma prevista em lei. Cuida-se de um direito do trabalhador. Dá-lhe o Estado garantia desse pagamento. A contribuição, pelo empregador, no caso, deflui do fato de ser ele o sujeito passivo da obrigação, de natureza trabalhista e social, que encontra, na regra constitucional aludida, sua fonte. A atuação do Estado, ou de órgão da Administração Pública, em prol do recolhimento da contribuição do FGTS, não implica torná-lo titular do direito à contribuição, mas, apenas decorre do cumprimento, pelo Poder Público, de obrigação de fiscalizar e tutelar a garantia assegurada ao empregado optante pelo FGTS. Não exige o Estado, quando aciona o empregador, valores a serem recolhidos ao Erário, como receita pública. Não há, aí, contribuição de natureza fiscal ou parafiscal. Os depósitos do FGTS pressupõem vínculo jurídico, com disciplina do Direito do Trabalho. Não se aplica às contribuições do FGTS o disposto nos arts. 173 e 174, do CTN. Recurso Extraordinário conhecido, por ofensa ao art. 165, XIII, da Constituição, e provido, para afastar a prescrição qüinqüenal da ação." (Destaques inexistentes no original. RE 100.249-SP. Pleno. Maioria. Relator Ministro Oscar Corrêa. Julgado em 02.12.87).
Outro exemplo dos mais emblemáticos, notadamente pela longa tradição de cobrança e pacífica aceitação social, está representado no Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres - DPVAT, conhecido como "Seguro Obrigatório" e recolhido pelos proprietários dos veículos. Cumpre registrar que a Lei n. 6.194, de 1974, ao instituir o “Seguro Obrigatório” estabeleceu a fixação de medidas garantidoras do não licenciamento e não circulação de veículos automotores de vias terrestres, em via pública ou fora dela, a descoberto do referido seguro. O Decreto-Lei n. 73, de 1966, precisamente no art. 20, lista várias outras hipóteses de seguros legalmente obrigatórios.
Mais recentemente, já sob o império da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade da exigência pecuniária não-tributária no âmbito do funcionamento e da regulação de atividades econômicas estratégicas (como o setor de energia elétrica). Eis o importantíssimo precedente (com destaques inexistentes no original):
“ADC 9/DF - DISTRITO FEDERAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA. Rel. Acórdão. Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 13/12/2001. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 23-04-2004. Votação: por maioria, vencidos os Min. Néri da Silveira e Marco Aurélio.
Ementa AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA nº 2.152-2, DE 1º DE JUNHO DE 2001, E POSTERIORES REEDIÇÕES. ARTIGOS 14 A 18. GESTÃO DA CRISE DE ENERGIA ELÉTRICA. FIXAÇÃO DE METAS DE CONSUMO E DE UM REGIME ESPECIAL DE TARIFAÇÃO. 1. O valor arrecadado como tarifa especial ou sobretarifa imposta ao consumo de energia elétrica acima das metas estabelecidas pela Medida Provisória em exame será utilizado para custear despesas adicionais, decorrentes da implementação do próprio plano de racionamento, além de beneficiar os consumidores mais poupadores, que serão merecedores de bônus. Este acréscimo não descaracteriza a tarifa como tal, tratando-se de um mecanismo que permite a continuidade da prestação do serviço, com a captação de recursos que têm como destinatários os fornecedores/concessionários do serviço. Implementação, em momento de escassez da oferta de serviço, de política tarifária, por meio de regras com força de lei, conforme previsto no artigo 175, III da Constituição Federal. 2. Atendimento aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em vista a preocupação com os direitos dos consumidores em geral, na adoção de medidas que permitam que todos continuem a utilizar-se, moderadamente, de uma energia que se apresenta incontestavelmente escassa. 3. Reconhecimento da necessidade de imposição de medidas como a suspensão do fornecimento de energia elétrica aos consumidores que se mostrarem insensíveis à necessidade do exercício da solidariedade social mínima, assegurada a notificação prévia (art. 14, § 4º, II) e a apreciação de casos excepcionais (art. 15, § 5º). 4. Ação declaratória de constitucionalidade cujo pedido se julga procedente."
“Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, deferiu a medida cautelar na ação declaratória para suspender, com eficácia ex tunc, e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dos artigos 14 a 18 da Medida Provisória 2.152-2 de 1º/6/2001 - que estabelecem metas de consumo de energia elétrica, prevendo a suspensão do fornecimento em caso de descumprimento e a cobrança de tarifa especial aos consumidores que ultrapassem suas metas. À primeira vista, o Tribunal entendeu demonstrada, em face da crise de energia elétrica, a proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas, salientando que a tarifa é preço público de natureza política, permitindo, por conseguinte, a adoção de um regime especial de tarifação com vistas a desestimular o consumo de energia, nos termos do art. 175, parágrafo único, IV, da CF ("Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: ... III - política tarifária;"). Vencidos os Ministros Néri da Silveira, relator, e Marco Aurélio, que indeferiam a liminar por entenderem que a tarifa especial não tem caráter de contraprestação do serviço de energia elétrica, mas sim de composição de reserva para remunerar terceiros beneficiários do bônus, consubstanciando, assim, ou um novo tributo que só poderia ser instituído por lei complementar, ou uma sanção pecuniária por descumprimento de determinação administrativa, inadmissível de ser imposta por medida provisória haja vista seu caráter penal, cujos valores seriam desproporcionais e irrazoáveis. O Min. Marco Aurélio, destacou, ainda, que a tarifa especial consubstancia um verdadeiro empréstimo compulsório, instituído sem lei complementar e sem previsão para devolução. ADCMC 9-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 28.6.2001.(ADC-9)” Informativo STF n. 234
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.950, reconheceu a constitucionalidade de lei estadual que assegura aos estudantes o pagamento de meia-entrada do valor cobrado para o ingresso em eventos esportivos, culturais e de lazer. A decisão é de fundamental importância, inclusive para o tema desenvolvido neste articulado, porque reconheceu, com base nos fundamentos e objetivos constitucionais do Estado brasileiro (arts. 1o e 3o), a possibilidade e a necessidade de intervenção do Estado sobre o domínio econômico para garantir o interesse da coletividade representado pelo efetivo exercício dos direitos à educação, à cultura e ao desporto. A intervenção aqui destacada possui relevo especial porque, assim como na instituição de exigências pecuniárias, afeta diretamente o patrimônio particular com o objetivo de realizar valores e fins consagrados no Estado Democrático de Direito anunciado pela Constituição de 1988.
Assim, diante das considerações realizadas, impõe-se a conclusão de que não é válida a objeção, freqüentemente encontrada, no sentido de que o Poder Público somente poderia exigir (como obrigação ex lege) recursos pecuniários, de pessoas naturais e jurídicas, pela via dos tributos previstos na Constituição.
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