CAPÍTULO 4. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
I. CONCEITOS BÁSICOS (conforme a visão tradicional)
Eis os cinco conceitos básicos, na perspectiva tradicional, relacionados com a interpretação das normas jurídicas:
Hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito.
Interpretação é a atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto.
Construção significa tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São conclusões que se colhem no "espírito" (sentido, objetivo, fim), não na letra da norma.
Aplicação é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato.
Integração é o processo de preenchimento de eventuais vazios normativos. Existe controvérsia doutrinária acerca da existência de lacunas constitucionais.
As definições acima alinhadas são da lavra de Luís Roberto Barroso.
II. ENUNCIADOS NORMATIVOS: QUAIS CONSIDERAR E COMO CONSIDERÁ-LOS NO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO?
2.1. Enunciados constitucionais (tipos e características)
Analise as seguintes enunciados constitucionais:
Art. 37, caput
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".
Art. 40, parágrafo primeiro, inciso II
"Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição".
Assim, podemos constatar a presença de dois tipos de enunciados normativos na Constituição: as regras e os princípios. Não é a única distinção possível, mas, com certeza, é a mais importante nos dias atuais.
2.1.1. Regras
"Contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem".
São proposições normativas aplicáveis mediante subsunção. "Se os fatos nela previstos ocorrem, a regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos". Caso contrário, não há incidência. Portanto, é tudo ou nada (all or nothing).
Ordinariamente, a regra somente deixa de incidir sobre a hipótese de fato se for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor.
Os conflitos entre regras são resolvidos com o recurso a três critérios: o da hierarquia, o cronológico e o da especialização. Veja exemplos, nessa sequência, no quadro abaixo.
2.1.2. Princípios
"Têm maior teor de abstração", referindo-se a um conjunto de situações relativamente amplo.
Trata-se de uma categoria jurídica muito antiga. Normalmente, era atribuída uma dimensão puramente axiológica aos princípios, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta ou imediata. Seriam cânones dirigidos e a serem observados pelo legislador.
Atualmente, existe o reconhecimento da normatividade dos princípios, ou seja, o status de norma jurídica.
Vale relembrar a ilustração presente no Capítulo 1:
Mais do que a natureza ou status de enunciado normativo, os princípios foram conduzidos ao centro do sistema jurídico. Nesse sentido, a Constituição passa a ser entendida como um sistema aberto de princípios e regras destinado a realizar valores (com dimensão suprapositiva). O direito, portanto, visto como sistema aberto, sofre a "... permeabilidade a elementos externos e renuncia à pretensão de disciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto de possibilidades apresentadas pelo mundo real".
Os princípios são os principais canais de comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurídico. Não comportam, pois, enumeração exaustiva. "Passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico, espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos e seus fins".
"Numa ordem pluralista e dialética, existem princípos que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos".
A aplicação dos princípios, notadamente quando contrapostos, dá-se por ponderação (de valores ou interesses). Impõe-se, aqui, fazer escolhas fundamentadas, fazer concessões recíprocas e preservar, na medida do possível, o núcleo mínimo do valor que perde força.
Nesse contexto, princípios clássicos (igualdade, liberdade, separação de Poderes) passam a conviver com princípios pós-positivistas, tais como: razoabilidade e/ou proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, solidariedade.
Não existe, em função do princípio da unidade da Constituição, hierarquia entre princípios e regras constitucionais. Existe, isto sim, diversidade de funções. Ademais, uma regra pode ser interpretada ou aplicada de forma semelhante ao princípio (quando contém um termo ou expressão indeterminada). É possível que uma regra excepcione um princípio. Um princípio pode paralisar a incidência de uma regra.
A doutrina destaca três modalidades de eficácia dos princípios constitucionais.
"Pela eficácia direta, já referida, também, como positiva ou simétrica, o princípio incide sobre a realidade à semelhança de uma regra, pelo enquadramento do fato relevante na proposição jurídica nele contida" (caso 1 na figura acima).
"A eficácia negativa implica a paralisação da aplicação de qualquer norma ou ato jurídico que esteja em contrariedade com o princípio constitucional em questão" (caso 2 na figura acima).
"A eficácia interpretativa consiste em que o sentido e alcance das normas jurídicas em geral devem ser fixados tendo em conta os valores e fins abrigados nos princípios constitucionais" (caso 3 na figura acima).
As várias transcrições (entre aspas) acerca de regras e princípios foram formuladas pelo constitucionalista Luís Roberto Barroso.
2.1.2.1. Princípios: os dois principais enfoques no direito brasileiro
Virgílio Afonso da Silva destaca, com precisão, a existência de uma visão tradicional sobre a idéia de princípio na literatura jurídica brasileira. Esse entendimento mais clássico identifica como princípios os "mandamentos nucleares" ou as "disposições fundamentais" do sistema jurídico. As regras, nessa linha, são caracterizadas como concretizações ou instrumentalizações dos princípios.
Como alternativa ao critério da fundamentalidade, os princípios pode ser apartados das regras em razão das estruturas normativas diferenciadas. Assim, os "... princípios são normas que estabelecem que algo deve ser realizado na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas presentes. Por isso são eles chamados de mandamentos de otimização ..." (Robert Alexy). Portanto, os princípios apontam para um fim, para a realização de um valor tido como relevante, contemplando, em tese, vários comportamentos ou condutas possíveis. Já as regras são comandos que tratam de comportamentos ou condutas precisas e determinadas (para proibir, permitir ou obrigar).
2.1.3. Postulados
Humberto Ávila, na obra Teoria dos Princípios, registra a existência de três tipos de normas jurídicas:
a) regra: norma jurídica com dimensão imediatamente comportamental (descreve comportamentos) com aplicação por subsunção ou correspondência entre conceitos e fatos.
b) princípio: norma jurídica com dimensão imediatamente finalística (determina a realização de um fim juridicamente relevante). Estabelece um estado de coisas a ser promovido gradualmente como efeito de comportamentos necessários. Assim, são normas finalísticas que exigem a delimitação de um estado ideal de coisas a ser buscado por meio de comportamentos necessários a essa realização.
c) postulado: norma jurídica com dimensão imediatamente metódica. Estruturam a interpretação e a aplicação de princípios e regras mediante a exigência de relações entre elementos com base em critérios.
Gisela Gondin Ramos, na obra Princípios Jurídicos, afirma que "... os postulados são padrões estabelecidos para orientar a aplicação do Direito. São, assim, fatores ou parâmetros compartilhados pela comunidade, que se constituem em elementos de apreciação necessários ao intérprete, pois reúnem um conjunto de características ou especificações facilitadoras que se impõem na solução de determinado problema. (...) Não são normas, e não estão nem acima, nem abaixo dos princípios e das regras jurídicas, mas entre estes, operando de maneira a manter o sistema organizado e harmônico. Eis a sua função".
2.1.4. Importância
Atualmente, os princípios estão no centro das preocupações jurídicas, como ciência e como técnica. A crescente complexidade da sociedade humana, o pluralismo socioeconômico e ideológico, a virtual impossibilidade de adotar regras específicas para todas (ou quase todas) as situações relevantes, a definição jurídica de objetivos ou fins a serem alcançados e a utilização de termos polissêmicos e indeterminados na confecção da legislação são algumas das principais razões para a construção de sistemas jurídicos fundamentalmente abertos e centrados em normas-princípios.
Existe todo um conjunto de conseqüências para operacionalização (a "prática") de sistemas jurídicos abertos fundados em normas-princípios. Destacam-se: a) o reforço da relevância das técnicas de argumentação e convencimento (demonstração fundamentada na ordem jurídica de entendimentos, decisões e efeitos específicos); b) a necessidade de cuidados crescentes com as aplicações direta, "exagerada" e "interesseira" de princípios; c) a solução de conflitos entre: c.1) princípios, notadamente constitucionais; c.2) regras e princípios de mesma hierarquia e c.3) regras e princípios de hierarquias diferentes; d) a identificação ou construção de princípios implícitos e e) a identificação e tratamento de inovações meramente textuais (ou formais), ante conjuntos normativos já existentes.
2.1.5. Principais problemas na relação entre regras e princípios
O constitucionalismo atual apresenta uma novidade importantíssima na trilha de moldar comportamentos ou condutas, revolucionando as formas de pensar e aplicar o direito até então conhecidas e trabalhadas. Com efeito, ao admitir a força normativa dos princípios constitucionais suscita problemas singulares e de difícil equacionamento nos planos teórico e prático. Vejamos, sem pretensão de esgotamento das possibilidades, alguns dos principais desafios nessa seara.
a) abrangência material ou substancial do princípio. Indaga-se, neste ponto, quais os atos ou procedimentos juridicamente compatíveis, ou não, com o princípio considerado. A indeterminação própria dos princípios, e a considerável subjetividade daí decorrente, permite identificar dois grupos de situações:
a.1) as “simples”. Nesses casos, é virtualmente consensual que a hipótese está abrangida, ou não, pelo princípio tratado. Vejamos um exemplo. Não parece que exista qualquer tipo de censura ao raciocínio de que a ciência, ao acusado, acerca da imputação negativa que recaí sobre o mesmo está abrangida (ou realiza) o princípio da ampla defesa/contraditório.
a.2) as “complexas”. Nessas situações, existem raciocínios jurídicos consistentes que apontam tanto para a abrangência, como para a não-abrangência, da situação pelo princípio considerado. Aparentemente, na raiz dos caminhos percorridos pela argumantação e nas conclusões postas, encontram-se valores, com pesos diversos, sendo adotados. Um exemplo emblemático, gerador de duas súmulas em sentidos opostos, do STJ (número 343) e do STF (número 5 - vinculante), diz respeito a obrigatoriedade, ou não, da presença de advogado em processos administrativos disciplinares.
b) contraposição entre o princípio e a regra constitucional. Nesses casos, a norma-princípio constitucional é excepcionada pela norma-regra também com status constitucional. Pelo princípio da unidade da Constituição, as duas definições convivem como comando geral e comando específico. Nesse sentido, a igualdade ou isonomia entre homens e mulheres é excepcionada quando a mulher pode obter aposentadoria com idade e tempo de contribuição inferiores. Registre-se, de passagem, que há fortes razões sociais para a fixação do tratamento desigual tendo como objetivo, em última instância, igualar.
c) contraposição entre o princípio e a regra infraconstitucional. Esses são casos especialmente delicados em função da presença de um componente adicional de complicação: a relação de hierarquia entre as normas consideradas. Em linhas gerais, a regra pode desdizer um princípio porque realiza um outro princípio constitucional. Nesse caso, o legislador já fez uma ponderação entre os princípios subjacentes e definiu, para a hipótese, a primazia a ser considerada. Ao revés, a regra pode não ter sustentação em nenhum princípio albergado pela ordem jurídica e por afrontar, de forma vazia, um princípio constitucional deve ser considerada inválida. Assim, a norma infraconstitucional que estabelece a tramitação sigilosa de processos disciplinares está fundada nos direitos constitucionais de proteção à imagem e à honra e não é uma simples afronta ao princípio constitucional da publicidade.
d) conflito entre princípios na solução de caso concreto ou específico. Aqui a resolução do problema reclama a aplicação da técnica da ponderação ou sopesamento (adiante abordada).
e) construção de regra, pelo operador do direito (e não pelo legislador), a partir de princípio. A ausência de previsão legal para tratar determinado caso pode implicar na negação de direito protegido por princípio constitucional. Admite-se, com as devidas cautelas, que o operador do direito, normalmente o juiz, construa uma regra que resolva o caso (viabilize o exercício do direito). Um exemplo. O juiz pode autorizar o levantamento do FGTS do trabalhador para viabilizar trabalhamento médico, com base no direito à vida e à saúde, mesmo na ausência de disciplina legal autorizadora da operação.
f) não-aplicação de uma regra em caso específico em função da "atuação" de certos princípios. Os contornos gerais da regra pode, em certos casos concretos, afrontar de maneira inaceitável determinado princípio constitucional. Em casos assim, o princípio pode "comandar" a paralisação da incidência da regra naquele contexto fático. Nessa linha, a título de exemplo, a regra de trânsito que determina a aplicação de multa quando a velocidade desenvolvida ultrapassa certo limite pode ser afastada diante de situação em que alguém está sendo socorrido.
2.1.6. O novo Código de Processo Civil
O novo Código de Processo Civil, Lei n. 13.105/2015, define a centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana e a importância fundamental de uma série de princípios constitucionais. Ademais, consagra expressamente a concepção de que não ocorre a aplicação de enunciados normativos isolados. Confira a redação do art. 8o.:
"Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência".
O novo CPC também dispõe sobre a decisão judicial no caso de ponderação (ou sopesamento). Assim estabelece o art. 489, parágrafo segundo:
"No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão".
Normas constitucionais: regras e princípios
2.2. Mutação e alteração constitucional
2.2.1. Mutação constitucional (ou interpretação constitucional evolutiva)
Consiste na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na "mente" dos constituintes. É um processo informal de reforma do texto da Constituição (Luís Roberto Barroso).
Normalmente, são reconhecidos os seguintes limites ao processo de mutação constitucional: a) os significados mínimos do texto normativo e b) os princípios fundamentais do sistema jurídico vigente.
Exemplo 1. A 13a. emenda, de 1865, à Constituição norte-americana aboliu a escravatura. Entretanto, diante do mesmo texto normativo, dois momentos bem definidos são identificados: (a) em 1896, a Suprema Corte, ao julgar o caso Plessy vs. Ferguson, chancelou a doutrina do "equal but separate" (iguais mas separados) e (b) em 1954, a mesma Suprema Corte, ao julgar o caso Brown vs. Board of Education, considerou inconstitucional a segregação de estudantes negros nas escolas públicas.
EMENDA XIII (à Constituição dos EUA):
Seção 1. Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.
Seção 2. O Congresso terá competência para fazer executar este artigo por meio das leis necessárias.(Fonte: Site da Embaixada dos EUA no Brasil)
Exemplo 2. Possível interpretação evolutiva para considerar a união estável (ou casamento) entre pessoas do mesmo sexo.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo
a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
"... julgo procedente a presente ação constitucional, para, com efeito vinculante, declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher, além de também reconhecer, com idêntica eficácia vinculante, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros na união entre pessoas do mesmo sexo". Conclusão do voto do relator, Ministro Ayres Britto, na ADI 4277/DF e na ADPF 132/RJ.
Exemplo 3. Possível interpretação evolutiva para considerar o livro eletrônico abrangido pela imunidade tributária.
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
VI - instituir impostos sobre:
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
2.2.2. Alteração constitucional (ou reforma constitucional)
Importa em modificação formal do texto constitucional. A reforma, como antes mencionado, pode ser: a) revisão (mais extensa) e b) emenda (mais limitada ou pontual).
2.3. Recepção. Revogação. Repristinação.
2.3.1. Princípio da continuidade da ordem jurídica
Impõe que a ordem jurídica infraconstitucional, elaborada ao longo do tempo, no curso de décadas muitas vezes, não seja simplesmente desprezada com a edição de uma nova Constituição. Esse "desprezo" conduziria a conseqüências negativas de grande monta no campo civil, processual, penal, tributário, entre outros. Afinal, são as normas infraconstitucionais que operacionalizam as obrigações, contratos, heranças, o curso dos processos judiciais, a caracterização dos crimes, a imposição e a arrecadação dos tributos, etc.
2.3.2. Recepção
A recepção importa no recebimento da ordem jurídica infraconstitucional anterior pela nova Constituição, ressalvadas as normas incompatíveis com a nova Carta Política. Essas últimas normas, segundo o entendimento majoritário, são consideradas revogadas.
O art. 15, inciso III, do Código Tributário Nacional, é um exemplo de norma revogada por não-recepção pela Constituição de 1988. Com efeito, a hipótese de empréstimo compulsório destacada no art. 15, inciso III, do CTN não foi contemplada no art. 148 da Constituição de 1988.
A recepção envolve um juízo substancial ou material. Assim, na recepção, a norma anterior pode ganhar novo status jurídico-normativo. Um dos exemplos mais emblemáticos desse fenômeno consiste na norma que deixa de ter força de lei ordinária para ter força de lei complementar. É o caso clássico da Lei n. 5.172, de 1966 (Código Tributário Nacional).
O art. 34, §5o. do ADCT consagra expressamente o princípio, fenômeno ou teoria da recepção.
2.3.3. Revogação
A incompatibilidade (vertical) da legislação infraconstitucional diante de nova Constituição resolve-se pela revogação. Uma das conseqüências mais importantes dessa premissa é a impossibilidade de instauração do controle concentrado de inconstitucionalidade entre lei antiga e Constituição nova.
2.3.4. Repristinação
É a restauração expressa de uma lei revogada por intermédio de outra (lei repristinatória). Assim, no direito brasileiro, se a lei A é revogada pela lei B, a lei C, que revoga a lei B, não restaura a lei A. O art. 2o., §3o. da LINDB (antiga LICC) exige manifestação expressa do legislador para a repristinação/restauração ("Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência").
A discussão da repristinação no controle de constitucionalidade envolve um elemento inexistente no tratamento previsto na LINDB (antiga LICC) (revogação): o vício jurídico de inconstitucionalidade que significa nulidade do ato normativo e sua absoluta ineficácia.
O reconhecimento da inconstitucionalidade da legislação de regência de determinado tributo pode conduzir ao retorno da vigência (repristinação) da legislação anterior que regulava a cobrança. Com efeito, o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma implica, em regra, na sua nulidade com efeitos retroativos ou ex tunc (REsp n. 689.040 e EREsp n. 645.155). Assim, conclui-se que o preceito normativo inconstitucional não produziu efeitos jurídicos, notadamente o efeito revocatório da legislação anterior. A aplicação desse raciocínio pode ser observada no caso do PIS (REsp n. 587.518) e no caso do “crédito-prêmio do IPI” (REsp n. 591.708) (CASTRO, Aldemario Araujo. Primeiras Linhas de Direito Tributário. 2009. 5a. edição. Editora Fórum).
2.3.5. Modulação temporal de efeitos de decisões judiciais
Ultimamente, discute-se com intensidade a chamada modulação temporal das decisões judiciais com o propósito de conferir eficácia prospectiva a preceitos normativos reconhecidamente revogados. Na matéria, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça convergem no sentido de que a modulação temporal de efeitos prospectivos é providência excepcional e só cabível no caso da declaração de inconstitucionalidade (art. 27 da Lei n. 9.868, de 1999) (RE n. 353.657 e EREsp n. 738.689) (CASTRO, Aldemario Araujo. Primeiras Linhas de Direito Tributário. 2009. 5a. edição. Editora Fórum).
Eis os termos do art. 27 da Lei n. 9.868, de 1999: "Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".
2.4. Normas constitucionais inconstitucionais
O princípio da unidade da Constituição afasta qualquer consideração acerca da existência de normas constitucionais (originárias) inconstitucionais, na medida em que não reconhece hierarquia entre normas constitucionais (mesmo entre princípios e regras).
2.5. Eficácia das normas constitucionais
A doutrina clássica ou tradicional classifica as normas constitucionais em: a) auto-aplicáveis (auto-executáveis) e b) não auto-aplicáveis (não auto-executáveis).
A crítica a essa concepção considera que todas as normas constitucionais são auto-aplicáveis. Afinal, como normas jurídicas são todas dotadas de capacidade para produzir efeitos no mundo do direito. Existiria uma diferença de grau nos efeitos produzidos (maior ou menor), reclamando eventual complementação pelo legislador infraconstitucional.
A mais festejada das teorias acerca da eficácia das normas constitucionais, apresentada por José Afonso da Silva, identifica a existência de três tipos:
a) eficácia plena - possui normatividade suficiente para imediata aplicação independentemente de legislação superveniente;
b) eficácia contida - possui normatividade suficiente para imediata aplicação mas prevê a edição de legislação superveniente que restrinja sua eficácia e
c) eficácia limitada - não possui normatividade suficiente para imediata aplicação. A matéria depende necessariamente da intervenção do legislador infraconstitucional.
Os dois instrumentos presentes no texto constitucional para garantir efetividade aos direitos dependentes de normas regulamentadoras são:
a) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §3o.). A legimitidade está restrita aos elencados no art. 103, incisos I a IX, da Constituição;
b) mandado de injunção (art. 5o., LXXI). Qualquer pessoa (física ou jurídica) pode propor. Admite-se o mandado de injunção coletivo, embora não previsto expressamente na Constituição (conforme o STF). É incabível a concessão de liminar (segundo o STF).
A jurisprudência inicial do STF consagrou a posição não concretista, no sentido de reconhecer a falta de norma regulamentadora e cientificar o órgão responsável pela omissão (MI n. 107). Posteriormente, o Supremo passou a adotar a posição concretista, caracterizada pelo reconhecimento da omissão legislativa e pela efetivação do exercício do direito constitucional (MI n. 670, 708 e 721).
III. ELEMENTOS DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA TRADICIONAL APLICÁVEIS À INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
3.1. Interpretação quanto à origem
Pode ser legislativa, administrativa ou judicial. Alguns acrescentam a interpretação doutrinária.
A doutrina e a jurisprudência reconhecem que o Poder Executivo pode deixar de aplicar os atos legislativos que considere inconstitucionais. A interpretação judicial apesar de final e vinculante para os outros Poderes pode ser superada pela alteração do texto da própria Constituição.
3.2. Interpretação quanto aos resultados ou à extensão
Pode ser declaratória, extensiva ou restritiva.
Há certa convergência em torno das premissas de que as regras gerais, as que estabelecem benefícios, as punitivas e as de natureza fiscal são interpretadas restritivamente. Por outro lado, as que asseguram direitos, estabelecem garantias e fixam prazos são interpretadas extensivamente.
3.3. Métodos clássicos de interpretação
3.3.1. Gramatical (ou literal). Considera o conteúdo semântico (o sentido possível) das palavras. É o método mais combatido e criticado porque isola o texto do contexto e do sistema jurídico como um todo. Com efeito, o apego excessivo ou extremo à literalidade pode conduzir à injustiça, à fraude, a soluções inaceitáveis ou ao ridículo.
As palavras empregadas na Constituição devem ser entendidas em seu sentido geral e comum, a menos que resulte claramente de seu texto que o constituinte pretendeu referir-se ao seu sentido técnico-jurídico (Linares Quintana).
As dificuldades da interpretação constitucional aumentam na presença de termos polissêmicos e conceitos indeterminados.
3.3.2. Histórica. Busca o sentido da norma por intermédio dos precedentes legislativos e dos trabalhos preparatórios.
Apesar das críticas ao método histórico, ele desempenha um papel destacado na interpretação constitucional.
3.3.3. Sistemática. Procura o sentido da norma nas suas relações com as demais, buscando harmonias e congruências. Trata-se do mais prestigiado método de interpretação constitucional.
3.3.4. Teleológica (ou finalística). Procura revelar o fim da norma, o valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento com a sua edição.
Da aplicação dos diversos métodos pode resultar uma convergência ou uma divergência de resultados. Na última hipótese, duas diretrizes devem ser observadas: a) os limites e possibilidades do texto e b) os métodos objetivos (sistemático e teleológico) têm preferência sobre os métodos subjetivos (como o histórico).
IV. ELEMENTOS ESPECÍFICOS DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
4.1. Peculiaridades das normas constitucionais
Existem peculiaridades das normas constitucionais que devem ser acentuadas:
a) superioridade hierárquica: nenhum ato jurídico pode subsistir validamente no âmbito do Estado em conflito com a Constituição;
b) natureza da linguagem: apresentam maior abertura ou abstração e menor densidade jurídica na medida em que são normas principiológicas e esquemáticas. Geram uma indispensável operação de concretização;
c) conteúdo específico: ao veicular normas de organização, programáticas, valores a serem preservados e fins a serem alcançados. Distanciam-se da estrutura típica das normas jurídicas (ordens e proibições);
d) caráter político: veiculam as decisões fundamentais em relação à organização política da vida em sociedade (esforço de juridicização do fenômeno político).
4.2. Métodos contemporâneos de interpretação constitucional
4.2.1. Tópico-problemático. O caso concreto deve ser observado em primeiro lugar. Depois, só depois, deve ser identificada a norma adequada aos fatos analisados. Foi apresentado por Viehweg. Manuseia uma lógica dedutiva contrária a tradição do formalismo jurídico representada pelo raciocínio silogístico e mecânico.
4.2.2. Científico-espiritual. Busca a realização de soluções hermenêuticas conciliatórias com a promoção da coesão político-social. Algo como o espírito da Constituição em sintonia com o espírito da sociedade. Tratado na obra de Rudolph Smend.
4.2.3. Hermenêutico-concretizador. Segundo Konrad Hesse, o papel do intérprete da Constituição seria ativo ou construtivo. Parte-se da pré-compreensão da norma para o problema. Desenvolve a ideia de que se interpreta aplicando e se aplica interpretando (na linha do círculo hermenêutico de Gadamer).
4.2.4. Normativo-estruturante. Referido por Müller. Admite que o texto é a "ponta do iceberg" normativo e distingue texto e âmbito normativo (texto mais valores, ambiente econômico e ambiente social).
Todos os métodos mencionados atribuem grande importância ao caso concreto.
4.3. Postulados (ou princípios) de interpretação constitucional
Os métodos são considerados caminhos a serem percorridos no processo de interpretação (para se alcançar o sentido da norma). Os postulados são tratados como diretrizes que orientam o rumo a ser tomado no caso de dúvida ou impasse.
4.3.1. Supremacia da Constituição
Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da supremacia jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental. Na prática brasileira, já demonstramos em outra parte, no momento da entrada em vigor de uma nova Carta, todas as normas anteriores com ela contrastantes ficam revogadas. E as normas editadas posteriormente à sua vigência, se contravierem os seus termos, devem ser declaradas nulas. A supremacia da Constituição manifesta-se, igualmente, em relação aos atos internacionais que devam produzir efeitos em território nacional (Luís Roberto Barroso).
4.3.2. Presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público
O intérprete e o aplicador do direito devem observar duas premissas básicas: a) não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possibilidade de razoavelmente se considerar a norma válida, deve o órgão competente abster-se da declaração de inconstitucionalidade e b) havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, em meio a outras que carreavam para ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor.
São fundamentos constitucionais explícitos dessa presunção: a) o art. 97 e b) o art. 103, parágrafo terceiro.
4.3.3. Interpretação conforme a Constituição
O processo de interpretação conforme a Constituição pressupõe: a) escolha de uma, somente uma, interpretação, entre várias, em harmonia com a Constituição; b) buscar encontrar um sentido possível para a norma, que pode não ser o mais evidente e c) exclusão de outra ou outras interpretações possíveis. A interpretação pode utilizar a via extensiva ou restrita, entretanto, o texto normativo permanece íntegro.
O processo encontra limites. Não é possível torcer o sentido das palavras nem alterar a clara intenção do legislador.
Difere da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto porque essa exclui algumas interpretações admitindo que quaisquer outras são constitucionais.
4.3.4. Unidade da Constituição
Não é viável estabelecer, num plano abstrato, hierarquias entre normas constitucionais originárias. Impõe-se a harmonização de tensões e contradições entre normas constitucionais na perspectiva de aplicação das mesmas. A técnica a ser utilizada, no último caso, é a ponderação de bens ou valores. Tal técnica pressupõe: a) a identificação do bem jurídico tutelado e b) a associação ao valor/princípio próprio. A ascendência de determinados valores ou bens deve ser aferida em cada caso concreto.
4.3.5. Razoabilidade e proporcionalidade
Deriva, numa acepção material ou substancial, segundo várias manifestações doutrinárias e jurisprudenciais, da cláusula constitucional do "devido processo legal". Objetiva exercer controle sobre a discricionariedade legislativa e administrativa, validando juridicamente somente decisões estatais consistentes e congruentes (dotadas de uma racionalidade aceitável).
Razoabilidade e proporcionalidade são idéias, conceitos ou critérios ligados entre si, embora possuam sentidos próprios. Assim, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo pode ser desdobrado nos seguintes elementos (ou critérios):
a) conformidade, adequação ou razoabilidade. O meio empregado deve guardar adequação, conformidade, aptidão, no sentido qualitativo, com o fim perseguido. Flagramos exatamente nesse ponto o princípio da razoabilidade, na sua formulação corrente;
b) necessidade. Não há medida ou caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a direito ou situação do atingido pelo ato;
c) da proporcionalidade em sentido estrito. O que se perde com a medida tem menor relevo do que aquilo que se ganha.
4.3.6. Efetividade
Trata-se da busca do reconhecimento, da materialização ou concretização da norma. A efetividade, posterior a eficácia, também denominada eficácia social ou fática, implica na realização física do Direito.
São instrumentos da efetividade constitucional no campo delicado da omissão legislativa: (a) ação direta de inconstitucionalidade por omissão e (b) mandado de injunção.
4.3.7. Interpretação dos direitos fundamentais
Por influência do princípio da eficência ou da interpretação efetiva, deve ser atribuída a norma veiculadora de direito fundamental o sentido que maior eficácia lhe dê, consideradas limitações fáticas e jurídicas aplicáveis.
V. SUPERAÇÃO DA HERMENÊUTICA JURÍDICA TRADICIONAL
As mais modernas e profundas reflexões sobre a hermenêutica jurídica apontam para uma revolução na forma de compreender e operacionalizar o direito. O uso da palavra “revolução”, com fortíssima carga semântica, não é exagerado. Com efeito, existem cânones clássicos ou tradicionais sobre a matéria, elaborados e repetidos por décadas, que estão quase que completamente superados.
Interpretar, no sentido tradicional, seria definir o sentido, o conteúdo e o alcance da norma jurídica. Existem pelo menos três grandes problemas envolvidos nessa definição: a) o objeto da interpretação seria a norma jurídica; b) a interpretação buscaria revelar ou declarar algo já presente e c) os fatos, caracterizadores do caso em apreciação, não interfeririam no resultado do processo.
Também é clássica a separação entre a atividade de interpretação e de aplicação do direito. Com efeito, diz-se que consumada a interpretação, e só aí, chega o momento da aplicação. Assim, a norma jurídica a ser interpretada, veiculadora de uma situação descrita abstratamente, seria a premissa maior. O caso concreto seria a premissa menor. O processo de ajustamento da premissa menor à premissa maior, como raciocínio silogístico, é conhecido amplamente como subsunção. Os fatos da vida, a razão de ser do processo hermenêutico, figuram como irrelevantes ou inertes no resultado da interpretação e da aplicação. Admite-se, ainda, que o relato abstrato presente na norma jurídica contém a solução, previamente concebida e unívoca, para os problemas sociais relacionados com a disposição normativa invocada.
Ademais, a hermenêutica tradicional apresenta uma série de métodos (literal ou gramatical, histórico, teleológico e sistemático) a serem manuseados pelo intérprete-aplicador. Entretanto, subsistem perguntas sem respostas claras ou seguras: a) em que consiste cada método (ou quais os passos ou etapas a serem percorridos)?; b) como ordenar hierarquicamente o uso desses métodos? e c) como definir, diante de um caso concreto, o método a ser escolhido? Nessa seara, existe um problema mais profundo. Indaga-se: o processo hermenêutico é e está circunscrito a aplicação de um conjunto de métodos ou critérios?
Todas essas considerações ou premissas (dogmas, para muitos) passaram e passam por profundas contestações. O panorama jurídico atual vê surgir um conjunto novo de premissas que lança as bases de novos e transformadores paradigmas para o processos de interpretação-aplicação do direito.
5.1. As mais importantes premissas para uma nova hermenêutica jurídica
a) a distinção entre texto e norma
Os mais avançados estudos de hermenêutica jurídica apontam para a existência de uma distinção fundamental: os textos ou enunciados normativos e as normas jurídicas são realidades distintas, embora profunda e complexamente relacionadas. Nesse sentido:
“Segundo essa distinção, de larguíssima aceitação, independente de corrente doutrinária, texto e norma não se confundem, pois o primeiro é apenas um enunciado lingüístico, enquanto que a norma é o produto da interpretação desse enunciado” (Virgílio Afonso da Silva).
Assim, os inúmeros diplomas legais que compõem a ordem jurídica, inclusive a Constituição, veiculam diretamente textos ou enunciados normativos. A obra imediata do legislador consiste num conjunto extremamente amplo e complexo de textos legais. Raramente é possível flagrar um comando normativo que assuma, para o leitor, a forma lógica de uma norma jurídica completa com a fixação de um comportamento esperado diante de uma situação com contornos razoavelmente bem definidos.
b) a estrutura lógica da norma jurídica
Aceita-se amplamente entre os pensadores do direito que as normas jurídicas possuem uma estrutura lógica específica. As variações, entre essas conjecturas, são mínimas. Em suma, a estrutura lógico-formal da norma jurídica indica que deve ser B, se ocorrer A. Em outras palavras, se A deve ser B. Nesse rumo:
"Em linguagem do Código Civil: 'Art. 2o. Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil'. Essa linguagem técnica do Código encobre a linguagem lógica: dado o fato de ser homem, deve-ser a capacidade ... Em linguagem simbólica, se se dá F (o fato de ser homem), então deve-ser (o sujeito) S" (Lourival Vilanova).
Inúmeros juristas apontam uma importante sutileza na formulação dessa estrutura lógica. Com efeito, partindo corretamente da característica essencial do direito como uma ordem voltada para conformar (ou ordenar) comportamentos em sociedade, destacam muitos juristas que a consequência (ou consequente) da norma jurídica mostra-se como o surgimento de um vínculo (relação jurídica) onde se define a conduta de alguém em face de outro ou outros. Nesse sentido:
“Porém, em acepção restrita, aquelas que se articularem na forma lógica dos juízos hipotéticos-condicionais: Se ocorrer o fato F, instalar-se-á a relação R entre dois ou mais sujeitos de direito (S' e S'')” (Paulo de Barros Carvalho).
c) as normas jurídicas abstratas e as normas jurídicas concretas, individuais ou de decisão
Um ou vários dispositivos legais (enunciados normativos) concorrem para a construção da norma jurídica como proposição lógica (com antecedente e consequente). Trata-se da norma jurídica abstrata como padrão geral de comportamentos esperados. Essa proposição não tem relação direta com nenhum caso ou problema a ser efetivamente solucionado. Quando a questão é posta nesse último nível, do equacionamento do caso, quando são consideradas todas normas jurídicas abstratas aplicáveis e o contexto fático observado, produz-se a norma jurídica concreta, individual ou de decisão. Nessa linha:
“O fato é que a norma é construída, pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito. (…) Partindo do texto da norma (e dos fatos), alcançamos a norma jurídica, para então caminharmos até a norma de decisão, aquela que confere solução ao caso.” (Eros Roberto Grau).
d) os modais deônticos e a peculiar construção da norma jurídica concreta, individual ou de decisão
A norma jurídica concreta, individual ou de decisão resolve um caso específico caracterizado por um contexto fático bem definido. Trata-se do direito no seu plano operacional mais básico ou elementar, prevenindo ou resolvendo um conflito. Assim, sua estrutura lógica define um comportamento, em relação a terceiros, a partir dos fatos considerados. Esse comportamento, manifestado em modais deônticos, pode ser uma permissão, uma proibição ou uma obrigação. Não há possibilidade lógica de uma quarta hipótese. Nesse rumo:
"... a norma jurídica regulamenta o comportamento social de forma imperativa, estabelecendo proibições, obrigações e permissões." (Dimitri Dimoulis).
"A fórmula elíptica 'Se A é, então B deve-ser', assim como o esquema se se dá (se ocorre, se se verifica um fato) F, então S, está facultado, está proibido, está obrigado com a conduta C, (fazer/omitir) perante S (...) obrigatório, permitido e proibido, então qualquer juridicamente regulada inserir-se-á numa e somente numa dessas três possibilidades, e não em uma quarta possibilidade." (Lourival Vilanova).
e) o processo de interpretação-aplicação e a construção das normas jurídicas abstratas e concretas pelo operador do direito
O papel criador ou construtivo do operador é fundamental no processo de interpretação-aplicação do direito. Com efeito, a norma jurídica abstrata e principalmente a norma jurídica concreta ou de decisão resultam de um esforço de reunir e sopesar os elementos pertinentes (fatos, valores e enunciados normativos).
"O intérprete procede à interpretação dos textos normativos e, concomitantemente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os acontecimentos que compõem o caso se apresentam vai também pesar de maneira determinante a produção da(s) normas(s) aplicável(veis) ao caso (...) Como e enquanto interpretação/aplicação, ela parte da compreensão dos textos normativos e dos fatos, passa pela produção das normas que devem ser ponderadas para a solução do caso e finda com a escolha de uma determinada solução para ele, consiganda na norma de decisão" (Eros Roberto Grau).
f) a influência da pauta axiológica (ideologia) do operador do direito no processo de interpretação-aplicação
Quanto mais complexa seja a situação fático-jurídica a ser considerada no processo de interpretação-aplicação, com a presença de considerável quantidade normas jurídicas abstratas, eventualmente apontando em sentidos diversos, mais decisiva será a pauta axiológica do operador do direito. Afinal, a escala/hierarquização de valores, um dos mais nobres sentidos do vocábulo ideologia, definirá a prevalência de certas normas abstratas sobre outras e, por fim, qual o modal deôntico "escolhido" como o mais "adequado" para o caso.
"O intérprete atua segundo a lógica da preferência, e não conforme a lógica da consequência [Comparato]: a lógica jurídica é a da escolha entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada [Larenz]. A norma não é objeto de demonstração, mas de justificação. Por isso a alternativa verdadeiro/falso é estranha ao direito; no direito há apenas o aceitável (justificável). O sentido do justo comporta sempre mais de uma solução [Heller]" (Eros Roberto Grau).
g) a argumentação jurídica como forma de legitimação da norma construída pelo operador do direito
A argumentação jurídica será tanto mais forte, consistente e convincente quanto demonstre que a pauta axiológica do operador do direito que contróe a norma jurídica concreta realiza a pauta axiológica presente na ordem jurídica, notadamente no texto constitucional.
"Com efeito, no exercício da práxis do Direito, o julgador deve adotar uma decisão razoável e motivada, recusando tanto a intuição evidente, quanto o voluntarismo arbitrário. Para tanto, é instado a selecionar as fontes normativas e modular o alcance da interpretação, justificando suas opções com base na força persuasiva e aceitabilidade social das teses jurídicas. Dispõe, assim, da faculdade de erigir os argumentos mais convincentes, priorizando valores que melhor se coadunam com a justiça concreta. Exercitando a argumentação jurídica, o julgador cristaliza o entendimento mais razoável perante o caso sub judice, propondo a adesão de seus interlocutores - a comunidade jurídica" (Ricardo Maurício Freire Soares).
h) a superação da tradicional hermenêutica dos métodos
Os métodos clássicos de interpretação apontam para a falsa concepção de que o intérprete/operador do direito encontra-se em posição alheia e externa ao texto jurídico e pode compreendê-lo (no sentido de atribuição de significados) seguindo caminhos/técnicas de raciocínio (métodos). Presente aí uma suposta possibilidade de alcançar a (única) verdade jurídica.
"A grande falácia da Hermenêutica Jurídica [tradicional] é supor que o juiz seja como um autômato de métodos por ela ofertados para a melhor fixação de sentido de textos legais, para que deles extraia a melhor compreensão e a mais justa decisão." (Mariá Brochado).
9.2. Visão integrada do processo de interpretação-aplicação do direito (exemplo)
"... a atividade hermenêutica do jurista comporta a apreciação de valores e a força retórica dos melhores argumentos. A interpretação jurídica não se resume a uma operação lógico-formal, sendo antes um processo complexo, no qual fatores normativos, axiológicos e fáticos se correlacionam dialeticamente, ao longo da experiência social. A ciência do Direito é, portanto, um saber aberto a reformulações, porque dependente de um contexto histórico e cultural" (Ricardo Maurício Freire Soares).
Autor: Aldemario Araujo Castro.
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Brasília, 21 de outubro de 2015.